Cintia Magno
Uma festa organizada com o objetivo de arrecadar fundos para a compra de material escolar para a irmã de um DJ é, para muitos, o grande marco originário de uma cultura genuinamente ligada à população negra, o hip hop. Envolvendo diferentes elementos e expressões artísticas, a cultura hip hop se espalhou pelo mundo, inspirou movimentos organizados, e encontra sua cena também no Estado do Pará.
Neste Dia da Consciência Negra, lembrado em 20 de novembro, o convite é para conhecer um pouco da cultura que, através de suas práticas, exerce papel fundamental na construção da identidade da juventude negra e no enfrentamento ao racismo estrutural.
Um dos pioneiros da cena do rap no Estado do Pará, presente desde a década de 1990, o rapper, doutor em Ciências Sociais e professor de sociologia, Bruno BO, considera que há uma certa divisão no movimento hip hop no que diz respeito ao surgimento da cultura. Alguns consideram que o hip hop tenha vivenciado seu marco inicial no dia 11 de agosto de 1973, quando a primeira festa do tipo foi organizada pelo DJ Kool Herc, no Bronx, distrito de Nova Iorque que foi o berço do hip hop e do rap.
Já outros consideram o dia 12 de novembro de 1973, que é a fundação da Zulu Nation, do DJ Afrika Bambaataa. Para o professor doutor Bruno BO, toda a cultura ligada ao hip hop tem início na festa do dia 11 de agosto.
“Nessa festa, que para mim é o marco inicial do hip hop, tem uma série de elementos que já apontam o que seriam os valores do hip hop. Ela é feita para poder comprar material escolar para a Cindy Campbell, que era irmã do Campbell, que era o Dj da festa. Então, já está ali envolvida a questão da educação, de gênero, de entretenimento. Tem muita coisa que está já acontecendo ali, ao mesmo tempo, e que depois vão virar valores da cultura hip hop”, acredita.
“Claro que o Bambaataa depois vai dar o nome da cultura hip hop, vai propor o Quinto Elemento, que é o conhecimento. Os outros quatro elementos seriam DJ, o MC, o Breaking (a dança de rua) e o graffiti. Então, o Bambaataa é meio quem vai dar essas nomenclaturas, mas eu continuo considerando o dia 11 de agosto como o início de tudo”.
Reunindo tais elementos, o que tem início a partir dos anos 1970 é o que se reconhece como a cultura hip hop, aqui considerando cultura como um conjunto de valores, uma forma de ver o mundo e uma forma de estar no mundo que envolve ética, moral, tradição. E, para além disso, existe o movimento hip hop que, naturalmente, se vale dos elementos da cultura, mas que está mais ligado a uma organização social e política.
“Tem uma frase que eu gosto muito de falar que é ‘eu não eu não faço hip hop, eu sou hip hop’ porque eu vivo o hip hop. Eu acordo e durmo e a minha visão é guiada pelos valores da cultura hip hop, por aquilo que aprendi dentro da cultura hip hop, que é saber lidar com a rua, saber lidar com questões das minorias, várias coisas. Isso é a cultura hip hop”, explica Bruno BO.
“Agora, quando a gente fala de movimento hip hop, eu acho que a gente está falando de uma coisa mais organizada, como coletivos, como posses, que é como a gente chamava nos anos 90, e que atualmente são as crews”.
A exemplo dessa organização, Bruno lembra da existência de um coletivo organizado de hip hop que foi pioneiro em Belém e do qual ele fez parte, a NRT (Nação da Resistência Periférica), que sempre se manteve muito próxima do movimento negro, tanto do Mocambo, quanto do Cedenpa e ainda do MST.
“Então, eu acho que quando a gente está falando de movimento, a gente está falando sobre isso e quando a gente está falando de cultura, a gente está falando de uma cultura que tem raiz afro-latina e que também tem essa coisa da questão racial como uma das principais bandeiras, um dos principais valores. O hip hop surge para que uma comunidade afro-hispânica da periferia de Nova Iorque pudesse ter acesso a uma série de direitos sociais e civis que eram negados a essa população. Então, o hip hop surge, como várias culturas pelo mundo, inclusive o próprio tecnobrega aqui no Pará, como essa resposta à redução de possibilidades que se tinha”.
Nesse sentido, o professor considera que a cultura hip hop sempre foi forte no Pará, ainda que hoje os cantores de rap que atuam no Estado consigam alcançar uma maior visibilidade do que se conseguia nos anos 90, por exemplo. Independente disso, Bruno BO considera que a importância da cultura e do movimento hip hop está muito mais atrelada ao papel que eles sempre exerceram na própria construção da identidade da juventude negra no Brasil e, sobretudo, na Amazônia.
“No Pará a gente já tem uma forma de negritude diferente, a gente é mais claro, mais miscigenado com indígena. Imagina que esse é um contexto extremamente complicado de se fazer um letramento racial e de formar uma consciência racial nas pessoas”, avalia.
“E o movimento hip hop conseguiu ultrapassar isso e fazer a formação racial dos jovens desde a década de 90 para cá. Eu vejo muitas pessoas que foram fruto disso. Há 15 ou 20 anos você andava por Belém e não via um monte de pessoas com cabelo black, trança. Então, eu vejo muitas pessoas que assumiram a sua negritude e que fizeram a sua construção de identidade racial a partir daquilo que a cultura hip hop no Pará trouxe. O hip hop no Brasil, e com certeza no Pará e em Belém também, foi esse gancho de fazer com que todo o discurso e a luta do movimento negro brasileiro chegassem de uma forma mais lúdica e artística para a juventude, para que ela também fizesse a sua formação de identidade”.
Cultura e hip hop
Todo o peso da cultura e do movimento hip hop para essa formação de uma identidade negra é evidenciada na história do rapper e artista visual de Graffiti, Gel ACN. Ele lembra que conheceu o movimento ainda em 2004, através de uma rádio comunitária que ele passou a frequentar. Foi a porta de entrada para que ele chegasse à NRP (Nação de Resistência Periférica), movimento que existia à época.
“Aí eu fui conhecer um pouquinho o que era o hip hop, quais eram os seus elementos, o que aquela juventude estava discutindo, o que estava fazendo e eu me incluí no meio através do graffiti, que eu já tinha um contato”, conta.
“O hip hop é transformador. As suas ferramentas acabam transformando a vida dos seus militantes. Eu, por exemplo, não tinha conteúdo sobre consciência política, consciência de classe, consciência de raça, eu não tinha nada disso. Eu nem me identificava como negro, por exemplo. Essa leitura tu não aprendias em lugar nenhum, nem em escola, nem em universidade, e a sociedade só te empurrava o racismo e a violência, então, através do hip hop eu passei a ter outras perspectivas de vida, a trabalhar em projetos sociais, que a gente faz até hoje, principalmente com o graffiti”.
Ao se dedicar ao graffiti, Gel formou um coletivo dedicado à expressão artística e que é conhecido pela sigla ACN, Arte Cabocla do Norte, e que em 2024 completa 20 anos de existência. Ainda dentro da cultura hip hop, com o tempo, ele também passou a se dedicar ao rap, hoje integrando o grupo Máscara da Baixada.
“A gente faz oficinas de graffiti, faz mutirões, então, se não fosse o hip hop o destino de vários jovens de 2003, da época que eu comecei, seria diferente. Assim como hoje, também, o hip hop continua mudando a vida de vários jovens, continua resistindo e a gente está nessa batalha através de políticas públicas. Hoje em dia a gente já corre atrás de editais, de parcerias com empresas públicas e privadas. Hoje a gente tem um leque de oportunidades maior, a internet ajudou a popularizar mais ainda o hip hop, então, com certeza mudou significativamente a vida de muitos jovens e vai continuar mandando por mais 50 anos”.
Foi também através do graffiti que a May Sodré, organizadora da batalha da São Cristóvão, que ocorre no bairro do Souza, teve o seu primeiro contato com a cultura hip hop. “Eu comecei como grafite, não grafitando, mas por ter amigos grafiteiros, isso na adolescência ainda. Daí eu dei um time, eu tive um baby e após o término desse meu relacionamento eu voltei a frequentar os mutirões e as rodas de movimento da cultura”, lembra. “Em 2021, eu comecei a organizar a batalha da São Cristóvão, eu fui convidada a organizar junto com outro mano”.
As batalhas são realizadas quinzenalmente, às segundas-feiras, e é nesses encontros que ocorrem as tradicionais batalhas de rimas de MC, onde a maior parte dos rappers que, no dia a dia, rimam nos coletivos pela cidade.
“O público, além das pessoas que colam na praça, são os manos que rimam no bonde, que rimam nos rios também porque tem os manos que rimam nos barcos. Aí eles chegam na batalha e a gente troca essa ideia e faz o movimento acontecer”.
Acompanhando de perto tudo o que acontece a partir dessa movimentação, May fica até sem palavras quando tenta explicar a importância que a cultura e o movimento hip hop ocupam na sua vida. “Eu me sinto muito feliz em fazer parte de um movimento que eu acredito que é a mudança, que é a transformação mesmo de vida de várias pessoas que estão ali, que às vezes não têm para onde ir e encontram no rap, no movimento hip hop um lugar”, reflete.
“É um lugar onde ele pode expressar suas dores, as suas felicidades também poque não é só tristeza e colocar tudo isso para fora. Nas batalhas eu me sinto muito feliz, eu me sinto em casa, me sinto acolhida, apesar de que o movimento vem de uma cultura machista, mas, para mim, como mulher negra e do movimento, estar fazendo isso é muito importante”.
Durante as batalhas da São Cristóvão, May conta que costumam abordar temas que são importantes de se discutir em coletivo. Já houve edições em que se discutiu o Setembro Amarelo, a questão das mulheres, das mães e agora, em novembro, a última batalha do mês vai abordar a questão da Consciência Negra.
“No hip hop dá pra gente fazer esses debates porque não tem como falar de futuro de pessoas e não entrar nesse debate político. Eu me sinto muito feliz de levar a cultura hip hop para outras pessoas, para as crianças, de ver crianças rimando e vendo que há uma oportunidade, que há um futuro longe de tanta violência. Lá a gente tenta colocar o máximo de respeito, de igualdade, não é só chamar as pessoas para ficar rimando qualquer coisa”.
EM NÚMEROS
50 anos
A cultura hip hop completa 50 anos de existência em 2023.